A besta acordou o homem

O homem levanta a mão prestes a abater-se sobre a mulher
Esta olha a mão pesada, nela nada sabe ler, suplica consenso
Será ferimento ou morte? O que o gesto vai trazer
A violência abate-se e a interrogação fica em suspenso

Nenhum lamento sai da sua garganta, só um ríctus de tristeza e um esgar de estupor
E o sangue que brota da boca outrora bela e desejada
Os olhos tacanhos requerem uma pausa ao agressor
Mas o bruto repele o mendigar da sua amada

A mulher sente um frio triste de criança, abandonada pela defesa
Num gesto natural anicha-se no chão na postura do embrião
Renuncia no canto, que pensa ser o seio matricial, aos trunfos que lhe deve a natureza
E abandona-se ao furor daquele que lhe ganhara o coração

As mãos aproximam-se como tenazes, para extraírem do rosto os restos de vida
A mulher já não é, senão uma criatura regressiva
No olhar vazio de futuros, desfilam extractos dos tempos de ternura
Natureza morta, cobaia de artistas adormecidos, em tela caída
Braços dormentes, que cobrem ainda uma cabeleira expressiva
Boca despida de gritos, de lábios derribados pela tortura...

As pancadas caiem cadenciadas, o esposo é um animal feroz
Até que o cérebro da infeliz mais não possa resistir
A algazarra retira-se, poisa-se no silêncio dos rameiros
Uma música medonha sai das entranhas do algoz
As bestas agoiram nos restolhos, o tempo suspende o seu porvir
E as flores retraem-se medrosas, murcham-se nos canteiros

O homem apagou a união sagrada, os estatutos sociais já não valem nada
Os contratos arderam na exaltação da animalidade ressurgida
Os sociólogos fazem resumos, os poetas fogem pela calada
E as seitas filosofadas fazem analises e fotografam a vida destruída

O homem olha as mãos assassinas outrora ninhos de afago
Mãos que riscaram o amor num quadro desolado de agrura
De gestos irracionais que expungiram uma vida num trago
Que nasceram da razão e acabaram na loucura

O homem não mais será bem-vindo à cidade da tolerância
Para seu castigo verá no fundo do seu poiso, estúpido e nauseabundo
O filme dum amor terno nascido em bela infância
Até que a misericórdia o retire deste mundo

Antanho Esteve Calado

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