Ampla Bagana e Piranha os deuses dos irracionais

O irracional tem os seus próprios deuses
Nunca se deu com aqueles dos racionais
Jamais se viu uma girafa fumar ao lado dum sapo
Nem um crocodilo tomar uma simples hóstia
Dalgum barbeiro colecionador de peles
Ou dum barítono assobiador nas horas vagas
Menos ainda uma cobra ser caixa de hipermercado.
Reza a empeitica antropologia animalesca
Que a deusa (Ampla) Barriga de todos os bichos
Teria destronado o seu marido e deus ( Bagana)
Ajudada por um exército de vermelhos piscos
Bagana vive no exilio com pensão principesca
Rodeado de borboletas de ouro-afogueadas
A que chama o fino e o louco racional de – inferno.
O formigueiro é o paraíso de todo irracional
Tudo o que foi mesmo tendo sido elefante
Na morte se transforma em formiguinha
Só a Leoa com seu porte super-elegante
Transforma-se na mais angélica rainha - Ampla.
Todo o bicho tem direito à sua própria filosofia
Diz a lenda da bicharia na constituição que não fere
Escrita nos ares nas terras e nos mares.
Que mesmo o mais incrédulo lacrau
Tem lugar cativo ao lado da deusa - Ampla
Salvo aqueles que foram demais carniceiros
Como o Urubu a Hiena e algum tipo de lagarto
Vão para o reino do destituído Bagana
Com pensão mínima e rodeados de mosquitos.
As baleias os tubarões os caranguejos e as ostras
Formam o quarteto que gerem o terceiro reino
Aquele que o racional considera de purgatório.
É comandado pela deusa-princesa (Piranha)
Filha varoa de Ampla e dum deus ao deus-dará
O reino é guardado por um exército de sardinhas
E é para lá que vão os menos-bons e os mais-ou-menos
Até que fiquem curados como o bacalhau.
Que se saiba não há religiões fixas nem doações a crédito
Não há dissenções nem capelas secundárias
Não há castigos além daqueles acima descritos
Não há rezas mezinhas ou ameaças de extinção
Apenas Ampla Bagana e Piranha
Nos seus respectivos reinos.

Antanho Esteve Calado

Ambos na mesma embarcação

Dê, dê que eu já vi e agora não vejo

A miséria está a paredes-meias com a fartura;
a arte a paredes-meias com a esterqueira;
o começo a paredes-meias com o fim.
As pedras sempre estiveram em mãos de alvenéus
que nunca as souberam modelar.

A humanidade como a vemos é um fiasco
não funciona como parede incontestável.
É tudo segundos terços e quartas esganadas
quintas abarrotadas até ao fim das gerações
sextas falidas e sábados de toscos sermões.

Valha-nos os domingos à porta das igrejas.

O médico-rico-pobre-artista-falhado pleiteia a esmola
com o leigo-sempre-pobre-filho-e-pai-padrão.

Dê, dê que eu nunca vi e tanto queria ver

Antanho Esteve Calado ( Fernando Oliveira )

Dizem ou não dizem - aqui eu digo

I
Que um sábio nunca se transformará em – sabão
Que a noz nunca nos pertence em absoluto
Que o aflito anda sempre com o coração na mão
E que o preto é a única cor de luto.
II
Que a bola de futebol é redonda
Que o jogador que chuta mal tem o pé quadrado
Que o mar nunca repete a mesma onda
Que quando se morre só se pode ir deitado
III
Que a beleza de dentro é mais bonita que a de fora
Que o cão é o melhor amigo do homem
Que a saudade nunca se vai embora
Que a barriga também se chama abdómen
IV
Diz-se muita coisa como há coisas que não se diz
Injuriar a sogra porque a filha não sabe cozinhar
Matar um colibri e dizer à criança que é perdiz
Roubar o babeiro desta para o nariz assoar.
V
O mentiroso diz que não disse o que o outro diz
Que era verdade que esteve tentado a dizer
Que não era pecado arrancar a árvore pela raiz
Malcriado era o outro que o estava a contradizer
VI
Diz-se que partir é morrer um pouco
A louça que parte não morre – isso é corriqueiro
Que quem se deita a afogar é chamado de louco
Que quem modela o barro é apenas um louceiro
VII
Já me disseram para eu ter juízo na cabecinha
Porque quem anda à chuva sempre se molha
Para não sonhar acordado que faz mal à pinha
E que não se verte vinho sem sacar da garrafa a rolha
VIII
Há quem diga que o ovo é filho e mãe da galinha
Que o resto é parte duma coisa que sobra
Que sou burro se entregar a carteira que não é minha
E que o perverso é mais mau do que uma cobra
IX
Que o gato tem sete vidas e a raposa é manhosa
Diz-se de Eva que comeu maçã com sportinguista (lagarto)
Que o cavalo é majestoso e a ovelha é ranhosa
Que quem sobe a montanha é um alto alpinista
X
Dizem que quem tem muitos filhos é pobre
Que uma igreja pequena se chama capela
Também se diz que quem tem cavalo é nobre
E que quem não tem porta entra e sai pela janela.
XI
Dizem que o poeta pode usar todos os superlativos
Se não insultar a menos santa virgem do céu
Que tudo o que escreve vai para a coluna dos activos
E a coluna do deve fica à espera - branca como o véu
XII
Dirão que para dizer o que disse mais valia ficar calado
Que não fique nervoso e que mantenha a calma
Que a escrever assim nunca vou a nenhum lado
E eu digo que só digo o que me vai na alma.

XII verdades quadradas que também podem ser esquinadas

Antanho Esteve Calado (Fernando Oliveira)

Foi num belo dia de Abril

Foi agora e já era quase tarde
Que amanheceu o passarinho
Troteando zunzuns de liberdade
E o homem transpôs o ninho.

Era tempo mas só foi agora
Que um povo cheirou o lírio
Tanto tempo tanta demora
Tanta gaiola tanto martírio.

Que ele quase bico não tinha
De tanto coçar a infelicidade
Heróis vestidos de carapinha
Expulsaram os reis da cidade.

Foi agora mas ainda a tempo
Que um povo passeou na rua
Com olhos de contentamento
Da pátria que volvera sua.

Era tempo e o tempo era senil
De sovar a insígnia ditatorial
E foi neste lindo dia de Abril
Que de novo nasceu Portugal.

Antanho Esteve Calado ( Fernando Oliveira )

“O autor exilado em Paris desde 1969”

Além e aquém da península Ibérica

Além fronteiras é tudo menos ibérico

O indivíduo elaborou modernidade
Mas ficou infecundo nas relações da cidade
Criou tesouros de cultura arquitectónica
Mas ficou com a garganta afónica
Espalhou tesouros orçamentais
E esganou os laços comportamentais

É utilitário, maquinal e escolástico
Não possui a seiva louca do elástico
É abatido quanto a lâmina de aço
Possui a razão além do seu próprio espaço
Vive num salão desenxovalhado e comodista
É filosofo maior, arrogante artista.

Aquém é da Europa, apêndice periférico

O indivíduo ocultou o modernismo
Explodiu na relação banhado de arcaísmo
Criou rios de risos e olhares altruístas
Cadernos de letras fixas nacionalistas
Bombeou o torso de cores medievais
E dançou lábias nos morenos arraiais

É expansivo, original e cabalista
Possui o mais sólido ocidente bairrista
É trigueiro, quanto o avoengo era celta
Tem uma língua trivial afiada e esbelta
Vive no adro da igreja, oferta abraços pios
É fado menor, mas sabe aceitar desafios

Antanho Esteve Calado

O muro dos sorrisos

Aquém eu sorrio, mas os meus sorrisos batem no muro
e querem voltar para a bodega de onde saíram.

Além estão os destinatários, com outras bocas
que me enviam sorrisos, que batem no muro
e querem voltar para as bodegas de onde saíram.

Em cima do muro, está um casal cativado
que recolhe todos os sorrisos
e os semeia em ambos lados.

Antanho Esteve Calado

Pontuações

Há outras gentes perto de mim,
que não sei quem são.

Brincam.
Choramingam.
Amam.
E talvez morram...

Morrerão?!
Porque sempre ali estão...
Então...
Serão sempre os mesmos?

Não sei por que ali estão!
Se acolhem o mesmo vento, o mesmo sol, a mesma idade
Que eu.
E não sei quem são...

Humanos são. Pois correm como eu
quando a chuva abusa.

A sociedade hodierna
Contém; e, cunha conforme avança
E eu nada vejo...
Que gentes quase iguais
Perto de mim
E não sei quem são!...

De inicio ao fim, nada soube deles
E eles souberam!
Que eu existi?

Antanho Esteve Calado

Deixem que ele seja

Recolham as vossas estórias - laudas pré-pós-armadas.

Enterrem-nas, nos mais profundo da vossa lembrança – que lá fiquem geladas.

Deixem respirar a ideia da terra homem.

Espalhem nos mares que enlouqueceram,
os pergaminhos engomados de ouro velho.

Recolham o sangue puro que derreteram
e,
refaçam os desfeitos, esvaziados de atrevimento,
de aragem, de selo.
Lavem todas as cores maculadas
e,
repintem os corpos cozidos no sal da vossa cupidez.

Deixem que tudo seja cor, cor e cor
e,
se mais não houvera, ainda cor.
Aquela cor natural que designa o homem encharcado de liberdade.

Não cor de cor, nem cor de terra.
Não cor de raça, mas cor da animalidade magoada pelos peitos estocados pelas vossas bandeiras.

Não fico pasmado diante dos vossos feitos
nem me interessam as vossas fronteiras.

- Gosto ou desgosto da vossa cultura
Adoro ou detesto a vossa língua
Mais nunca morrerei de míngua
Nem mais aceitarei qualquer tortura –

Recolham os vossos feitos – estou disposto a vos absolver
Soltem o homem agora, não mais tarde,
agora.

Deixando-o viver sem cor, na cor que ele desejar,
na terra dele.

Deixem que ele seja...

Desfaçam estórias e geografias.

Antanho Esteve Calado

Tratos e maltratos

Mercadejei o meu coirão nos mais diversos cantos do mundo

Proletário indistinto e vagabundo
Minguado na escudela e nos relatórios
No estaleiro, na granja, nos escritórios

Vendi o meu suor, como a prostituta vende o seu favor
Da Europa ocidental até à Europa maior
Da Ásia superior até à África de cor

Foi no meu pais onde fui mais maltratado
Descontos salariais guardados em bolso furado
Levam-me a estancar o meu desejo de aposentação

Terei talvez merecido descanso quando estiver no caixão

Antanho Esteve Calado

Ao homem da sua origem

Se te estorvar a invenção, como a raça
E nela não encontrares que tu, em migalhas
Escreve ao mandão, com veio de rechaça
Arguindo, porque te ofereceu só palhas

Qual que for o teu colorido, é sumptuoso
Não calcules os confins onde te espalhas
Que seja branco ou negro, fica orgulhoso
Mas tem cuidado, com alguns canalhas

Que te querem rifar. com pinças de mutismo
Se não trilhares, as pistas que traçaram
Que vão do estiolo, ao puro nacionalismo

Regenera sempre, a palavra humanidade
Guarda o nome que teus pais exclamaram
Antes do país e da raça, apenas liberdade

Antanho Esteve Calado

Ensopado de pátrias com carnes à borla

Resolutos e cobardes dialogaram com armas
flamejaram estalidos nos arraiais de ninguém

Rugidos
fanfarronices
insultos e debandadas

Maiorais altaneiros dessecam o suor da partida

Dizimada a frente
um montão na retaguarda
rouba o último espaço de recuo
triste escudo

A bandeira carregada de gritos não esvoaça
o estafeta estrangula o juramento
descamba

As vidas ardem
como castanhas assanhadas
nas clareiras
feias lareiras de homens lenho

De repente
um armistício invade a contenda

As pátrias empataram
os homens perderam

A pomba da paz arrastou a única asa válida
e o fumo do charuto cauterizou os defuntos

Cobardes e resolutos dialogaram sem armas

Que vale o choro da mãe
se a pátria caçoa.

Antanho Esteve Calado

A cada um a sua telha!...

Teilhard de Chardin, diz!…
Somos envelopes espirituais

Eu digo!…
Somos animais sofisticados

Teilhard de Chardin, diz!…

Não!...
Somos envelopes carnais

Eu digo!…
Somos figurinos desenhados

Se ele disser o seu adágio, eu direi o seu contrário
Se ele disser o seu anverso, eu direi o meu reverso
Nenhum de nós levará
algum beneficio moral ou erário

Mas os dois ganharemos, no anfibológico controverso

Antanho Esteve Calado

Antevisão

Nas ruas imaginárias duma cidade inexistente
Pisando as pedras velhas dum passado outrora crente
Jovens deuses deambulam no futuro da sua existência
Vestidos de homens respiram a decadência

Nas águas turvadas por essências irreais
Imagens pardas dum passado de mortais
Deslizam ocas e riem sem piedade
Gritando ao vento mensagens de saudade

Na noite eterna sem crepúsculo e sem aurora
Passeiam almas inocentes que outrora
Vidas plenas felizes ou desgraçadas
Se transformaram em fantasmas às manadas

Agarradas às árvores calcinadas tais espectros em paisagem de sonho
Vozes primitivamente quentes perdem-se no horizonte medonho
O próprio vento que se quisera de saudade
Uiva de dor nas encostas da cidade

Antanho Esteve Calado

A besta acordou o homem

O homem levanta a mão prestes a abater-se sobre a mulher
Esta olha a mão pesada, nela nada sabe ler, suplica consenso
Será ferimento ou morte? O que o gesto vai trazer
A violência abate-se e a interrogação fica em suspenso

Nenhum lamento sai da sua garganta, só um ríctus de tristeza e um esgar de estupor
E o sangue que brota da boca outrora bela e desejada
Os olhos tacanhos requerem uma pausa ao agressor
Mas o bruto repele o mendigar da sua amada

A mulher sente um frio triste de criança, abandonada pela defesa
Num gesto natural anicha-se no chão na postura do embrião
Renuncia no canto, que pensa ser o seio matricial, aos trunfos que lhe deve a natureza
E abandona-se ao furor daquele que lhe ganhara o coração

As mãos aproximam-se como tenazes, para extraírem do rosto os restos de vida
A mulher já não é, senão uma criatura regressiva
No olhar vazio de futuros, desfilam extractos dos tempos de ternura
Natureza morta, cobaia de artistas adormecidos, em tela caída
Braços dormentes, que cobrem ainda uma cabeleira expressiva
Boca despida de gritos, de lábios derribados pela tortura...

As pancadas caiem cadenciadas, o esposo é um animal feroz
Até que o cérebro da infeliz mais não possa resistir
A algazarra retira-se, poisa-se no silêncio dos rameiros
Uma música medonha sai das entranhas do algoz
As bestas agoiram nos restolhos, o tempo suspende o seu porvir
E as flores retraem-se medrosas, murcham-se nos canteiros

O homem apagou a união sagrada, os estatutos sociais já não valem nada
Os contratos arderam na exaltação da animalidade ressurgida
Os sociólogos fazem resumos, os poetas fogem pela calada
E as seitas filosofadas fazem analises e fotografam a vida destruída

O homem olha as mãos assassinas outrora ninhos de afago
Mãos que riscaram o amor num quadro desolado de agrura
De gestos irracionais que expungiram uma vida num trago
Que nasceram da razão e acabaram na loucura

O homem não mais será bem-vindo à cidade da tolerância
Para seu castigo verá no fundo do seu poiso, estúpido e nauseabundo
O filme dum amor terno nascido em bela infância
Até que a misericórdia o retire deste mundo

Antanho Esteve Calado